Blog do Dina - Escândalo de influencer revela estratégias no lucrativo tráfico sexual


Escândalo de influencer revela estratégias no lucrativo tráfico sexual

10 de março de 2023 às 13:41

O ex-lutador e influencer britânico Andrew Tate, que em 21 de fevereiro teve sua prisão estendida na Romênia por mais 30 dias, sustentava um estilo de vida extravagante no pequeno país do Leste Europeu por meio de um obscuro esquema de tráfico humano e exploração sexual de mulheres, segundo procuradores locais.

De acordo com detalhes do processo de 61 páginas revelados pela agência Reuters, Tate comandava uma rede de escravas sexuais para atuar em vídeos pornôs na plataforma de conteúdo adulto OnlyFans. As autoridades afirmam que seis vítimas ficaram em uma das propriedades de Tate e de seu irmão Tristan — que também foi preso — , onde eram forçadas a gravar vídeos pornográficos. Os dois negam todas as acusações.

O influenciador era o principal responsável por atrair as vítimas através do chamado "loverboy method" (método do amante apaixonado, em tradução livre), afirmam os investigadores. A tática consiste em seduzi-las com falsas promessas de amor, conquistando sua confiança para convencê-las a ir até o local onde serão feitas reféns.

Em uma das trocas de mensagens no processo, Tate teria convencido uma mulher da Moldávia, que conheceu pelo Instagram, a viajar com ele para a Romênia após um encontro em Londres. Acreditando em suas juras de amor, que incluíram discussões sobre casamento, a vítima aceitou o convite.

"Você deve entender que, uma vez que você é minha, você será minha para sempre", disse Tate durante o aliciamento, segundo o documento obtido pela Reuters. Ao chegar lá, ela foi estuprada duas vezes e recrutada para participar dos vídeos no OnlyFans, disseram os procuradores, acrescentando que homens armados impediam sua fuga.

Sem qualquer pudor, Tate explicava como o método era uma das suas principais fontes de renda em seu website, omitindo a parte da violência física e psicológica que, segundo investigadores, era impetrada para forçar as mulheres a participarem dos vídeos.

"Como eu fiquei rico? Webcam... Comando um estúdio de webcam por quase uma década, já tive mais de 75 garotas trabalhando para mim, e meu negócio de modelos é diferente do de 99% dos donos de estúdios de webcam", afirmava no site, acrescentando que "mais de 50% das minhas funcionárias são minhas namoradas no momento e, (...) nenhuma estava na indústria de entretenimento adulto antes de me conhecer".

À Reuters, a porta-voz do OnlyFans, Sue Beeby, disse que Tate nunca teve uma conta de criador ou recebeu pagamentos. Segundo ela, a plataforma o monitorava desde o início de 2022 e tomou medidas proativas para impedi-lo de postar ou monetizar conteúdo, sem detalhar como isso foi feito e por quais motivos.

Love bombing

Para Daniele Boggione, ativista e fundadora do canal no YouTube "Sobrevivendo na Turquia", que apresenta relatos de vítimas reais de tráfico humano, é comum no aliciamento a criação de um laço de confiança com a vítima. Ela explica que, quando isso é feito por meio da abordagem romântica, os aliciadores apelam para o "love bombing" (bombardeio de amor, em tradução livre), cuja manipulação é baseada em "demonstrações de atenção e afeto fora do comum". De acordo com um relatório da ONU sobre tráfico de mulheres e meninas de 2022, em 13% dos casos o aliciador tem um relacionamento romântico com a aliciada.

— Grosseiramente falando, eles te conhecem hoje de manhã e amanhã à tarde já te pedem em casamento. Eles têm pressa — afirma Boggione. — Na maioria dos casos, a mera execução do tráfico, ou seja, o deslocamento da vítima, não é feita de maneira violenta nem repentina. Mas a partir da hora que a vítima chega no destino final, o cenário muda — descreve ela.

O sociólogo e especialista em tráfico humano Olivier Peyroux afirma que essa forma de aliciamento pela internet existe há pelo menos 15 anos, mas teve um crescimento significativo durante a pandemia — efeito que também foi apontado no último relatório sobre tráfico humano do Departamento de Estado dos EUA, publicado no ano passado.

— A dificuldade desses aliciamentos é: eles são totalmente invisíveis aos familiares. Agora tudo acontece no celular, 24 horas por dia, sem que os pais sejam alertados durante a fase de abordagem — explica Peyroux.

Negócio lucrativo

O relatório das Nações Unidas também revela o impacto da tecnologia para essas organizações criminosas. Nos EUA, os canais de denúncia de tráfico humano registraram, em 2020, um aumento de 120% de vítimas em potencial que foram abordadas pelas redes sociais e aplicativos de relacionamento. Já para a exploração, o documento afirma que a internet é usada para facilitar a venda de serviços que as vítimas são obrigadas a oferecer.

"Embora as transmissões ao vivo [das vítimas] estejam geralmente ligadas ao abuso sexual infantil, há também evidências de lives envolvendo a exploração sexual de mulheres adultas", diz a ONU.

Análises do disque-denúncia americano para tráfico humano também mostram que, em 2019, a pornografia foi a terceira atividade mais comum no tráfico sexual, atrás apenas dos serviços de acompanhante e casas de prostituição.

Boggione compartilhou com o GLOBO o caso de uma depoente do seu canal, de codinome Bárbara, que foi aliciada aos 17 anos por um traficante que comandava uma rede de "camgirls". A jovem foi trancada na sala de um apartamento, com uma câmera apontada para ela, e era obrigada a fazer programas on-line utilizando brinquedos sexuais de tamanhos desproporcionais, o que a levou a desenvolver uma infecção grave no ânus. A vítima também relatou que só podia comer alface e bife, e no restante do tempo era forçada a tomar apenas água, café e laxante para emagrecer.

— Bárbara, porém, rendia muito para o negócio, e seu aliciador decidiu deslocá-la do sul do Brasil, onde fazia o trabalho virtual, para a Bielorrússia, onde foi obrigada a aliciar jovens locais — conta Boggione.

Em 2020, para cada 10 vítimas de tráfico humano no mundo, cerca de quatro eram mulheres adultas e duas eram menores. O tráfico sexual foi uma das formas mais comuns de exploração registradas e, entre as vítimas aliciadas para esse fim, cerca de dois terços eram mulheres e um quarto era de meninas menores de idade, informou a ONU.

Embora apenas 19% das quase 24,9 milhões de vítimas de tráfico humano no mundo sejam exploradas para fins sexuais, o crime é responsável por 66% do lucro total nesse negócio, segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2014. De acordo com a OIT, cada mulher explorada sexualmente gera um lucro estimado de US$ 100 mil por ano (R$ 509 mil) — valor quase cinco vezes maior que o de uma vítima de tráfico não-sexual (U$ 21.800 ou cerca de R$ 110 mil). Anualmente, o tráfico sexual movimenta cerca de US$ 99 bilhões (R$ 504 bilhões) ao redor do mundo.

Por que a Romênia?
A escolha do país para a suposta rede de exploração de Tate também dá uma pista sobre as estratégias adotadas pelas organizações criminosas. Segundo um levantamento global feito pelo Departamento de Estado dos EUA em 2022, a Romênia é uma das fontes primárias de vítimas de tráfico humano na Europa e, entre elas, 77% são exploradas para fins sexuais.

— A Romênia nunca travou uma grande luta contra a exploração sexual, embora seja o país da Europa de onde vêm a maior parte das escravas sexuais — afirma o especialista Olivier Peyroux. — Isso pode ser explicado pela legislação e pela cumplicidade local. O Conselho da Europa apontou essas questões em suas análises, mas até o momento as autoridades [romenas] não reagiram.

Localizada no Leste Europeu, conhecido como uma importante rota para o tráfico de pessoas no continente, a Romênia apresenta um cenário similar ao de outros países na região. Embora há décadas a exploração sexual seja a forma dominante de tráfico por lá, os métodos adotados pelos criminosos se reinventaram mais do que as autoridades, que frequentemente terceirizam o seu papel para ONGs locais. Segundo Peyroux, o fenômeno pode ser explicado também por um fator histórico.

— A guerra na antiga Iugoslávia provocou na região uma tendência de exploração sexual brutal — avalia o sociólogo. —[O conflito] também favoreceu a impunidade do crime organizado devido à proximidade entre o Estado e as estruturas criminosas.

O GLOBO